Um documento histórico que relata a violência contra os índios
Desaparecido há 45 anos, o Relatório Figueiredo, um dos documentos mais importantes produzidos pelo Estado brasileiro no último século, foi encontrado recentemente no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, com mais de 7 mil páginas preservadas e contendo 29 dos 30 tomos originais que relatam massacres, torturas, invasões de terras e outras violências sofridas pelos índios no interior do país nos anos 1960.
Agora, o relatório pode se tornar um trunfo para a Comissão da Verdade, que apura violações de direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988.
Relatório Figueiredo mostra extermínio de aldeias indigenas
Depois de 45 anos desaparecido, um dos documentos mais importantes produzidos pelo Estado brasileiro no último século, o chamado Relatório Figueiredo, que apurou matanças de tribos inteiras, torturas e toda sorte de crueldades praticadas contra indígenas em todo o país — principalmente por latifundiários e funcionários do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) —, ressurge quase intacto. Supostamente eliminado em um incêndio no Ministério da Agricultura, ele foi encontrado recentemente no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, com mais de 7 mil páginas preservadas e contendo 29 dos 30 tomos originais.
Em uma das inúmeras passagens brutais e revoltantes do texto um instrumento de tortura apontado como o mais comum nos postos do SPI à época, chamado “tronco”, é descrito da seguinte maneira: “Consistia na trituração dos tornozelos das vítimas, colocadas entre duas estacas enterradas juntas em um ângulo agudo. As extremidades, ligadas por roldanas, eram aproximadas lenta e continuamente”.
O Relatório de 1968, redigido pelo então procurador Jader de Figueiredo Correia, relata extermínio de aldeias inteiras, envenenamentos, torturas e assassinatos praticados pelo próprio Estado. Entre denúncias de caçadas humanas promovidas com metralhadoras e dinamites atiradas de aviões, inoculações propositais de varíola em povoados isolados e doações de açúcar misturado a estricnina – um veneno.
Impunidade
A investigação, feita em plena ditadura, a pedido do então ministro do Interior, Albuquerque Lima, em 1967, foi o resultado de uma expedição que percorreu mais de 16 mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do SPI e visitou mais de 130 postos indígenas. Jader de Figueiredo e sua equipe constataram diversos crimes, propuseram a investigação de muitos mais que lhes foram relatados pelos índios, se chocaram com a crueldade e a bestialidade de agentes públicos. Ao final, no entanto, o Brasil foi privado da possibilidade de fazer justiça. Albuquerque Lima chegou a recomendar a demissão de 33 pessoas do SPI e a suspensão de 17, mas, posteriormente, muitas delas foram "inocentadas" pela Justiça.
Os únicos registros do relatório disponíveis até hoje eram os presentes em reportagens publicadas na época de sua conclusão, quando houve uma entrevista coletiva no Ministério do Interior, em março de 1968, para detalhar o que fora constatado por Jader e sua equipe. A entrevista teve repercussão internacional, merecendo publicação inclusive em jornais importantes como o New York Times. No entanto, tempos depois da entrevista, o que ocorreu não foi a continuação das investigações, mas a exoneração de funcionários que haviam participado do trabalho. Quem não foi demitido foi trocado de função, numa tentativa de esconder o acontecido. Em 13 de dezembro do mesmo ano, o governo militar baixou o Ato Institucional nº 5, endurecendo o regime autoritário inaugurado pelo golpe de 1964, restringindo liberdades civis e tornando a ditadura ainda mais repressiva, aumentando a perseguição política, torturas, assassinatos e desaparecimentos a seus opositores.
O vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e coordenador do Projeto Armazém Memória, Marcelo Zelic, foi quem descobriu o conteúdo do documento até então guardado entre 50 caixas de papelada no Rio de Janeiro. Ele afirma que o Relatório Figueiredo já havia se tornado motivo de preocupação para setores que possivelmente estão envolvidos nas denúncias da época antes de ser achado. “Já tem gente que está tentando desqualificar o relatório, acho que por um forte medo de ele aparecer, as pessoas estão criticando o documento sem ter lido”, acusa.
O documento relata que índios eram tratados como animais e sem a menor compaixão. “É espantoso que exista na estrutura administrativa do país repartição que haja descido a tão baixos padrões de decência. E que haja funcionários públicos cuja bestialidade tenha atingido tais requintes de perversidade. Venderam-se crianças indefesas para servir aos instintos de indivíduos desumanos. Torturas contra crianças e adultos em monstruosos e lentos suplícios”, lamentava Figueiredo em uma das páginas recuperadas por Zelic. Em outro trecho contundente, o relatório cita chacinas no Maranhão, em que “fazendeiros liquidaram toda uma nação, sem que o SPI opusesse qualquer reação”. Uma CPI chegou a ser instaurada em 1968, mas o país jamais julgou os algozes que ceifaram tribos inteiras e culturas milenares.
Comissão da Verdade usará documentos históricos e depoimentos para apurar crimes contra indígenas
A Comissão Nacional da Verdade espera encontrar respostas para uma série de perguntas sobre violações de direitos humanos de indígenas brasileiros entre os anos de 1946 e 1988. Quantos podem ter morrido devido aos impactos das obras de infraestrutura durante o regime militar? Quantos Índios foram torturados ou mortos por serem considerados um entrave à política desenvolvimentista? Quantos passaram pelas prisões indígenas cuja história começa vir a público? A comissão vai se basear em depoimentos e na análise de documentos históricos do período para chegar às conclusões.
“A comissão ainda está coletando os primeiros elementos para remontar o que de fato ocorreu nesse período, mas, aos poucos, fui percebendo que há um vasto campo de investigação de violações dos direitos das populações indígenas que, na época, eram consideradas mero obstáculo ao desenvolvimento”, disse à Agência Brasil, em 26/09/2012, a psicanalista Maria Rita Kehl, responsável por coordenar a apuração das denúncias sobre violações aos direitos indígenas no período.
Ao citar algumas das antigas denúncias e relatos a respeito de abusos e crimes praticados contra os índios (principalmente após 1964, quando os militares tomaram o poder), Maria Rita adiantou que o problema da comissão é sistematizar e analisar todas as denúncias e informações produzidas ao longo das últimas décadas para tentar chegar à verdade.
“Estamos descobrindo mais coisas além das antigas denúncias. Acho, inclusive, que não vou dar conta de, em apenas dois anos, abarcar tudo. Até porque, também respondo pela investigação da violação aos direitos humanos de camponeses. Acho que vou ter que escolher alguns casos exemplares para mostrar o que de fato aconteceu”.
Entre as antigas denúncias que a comissão vai apurar está a acusação de que, no início da década de 1970, índios suruí, que viviam na região do Araguaia, no sul do Pará, foram forçados a ajudar o Exército na repressão contra grupos guerrilheiros contrário ao regime militar e defendiam uma revolução socialista no país.
Em ocasiões anteriores, a Fundação Nacional do Índio (Funai) já manifestou, em notas, que como a região do Araguaia esteve “praticamente sob ocupação militar, por ocasião da Guerrilha do Araguaia, o Exército exigia a abertura de estradas 'operacionais'”, que cortavam ou passavam muito próximas ao território suruí. Assim, índios e camponeses acabaram sendo envolvidos no conflito.
Em 2009, a Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça, indenizou 44 camponeses paraenses (ou seus parentes) por terem sido torturados, mortos ou perdido as propriedades durante a ação dos militares contra a guerrilha.
Maria Rita citou também as denúncias envolvendo os waimiri-atroaris, de Roraima. Em 2003, a Funai informou, em sua página na internet, que a etnia sofreu “grande redução populacional” durante os sete anos em que o 6º Batalhão de Engenharia de Construção do Exército construiu a BR-174, rodovia que liga Manaus a Boa Vista.
Alguns estimam que 2 mil waimiri-atroaris morreram na época. No entanto, o número não é consenso. No livro É a Funai Que Sabe, de 1991, o antropólogo e professor da Universidade de Brasília (UnB) Stephen Grant Baines diz que os dados estatísticos sobre a população waimiri-atroari eram “variáveis e contraditórios”, mas descreve os integrantes do grupo como “indivíduos cuja sobrevivência está sendo ameaçada […] pela ganância de empresas mineradoras” e por terem uma parte de seu território inundado por causa da Hidrelétrica de Balbina, em Presidente Figueiredo (AM), inaugurada em 1989.
A denúncia de que os waimiri-atroaris vinham sendo exterminados também foi discutida pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Reservas Indígenas, cujo relatório foi publicado em junho de 1978, em pleno regime de exceção. "Não foram poucas as denúncias formuladas nos depoimentos prestados nesta CPI, todas sobre invasões de áreas indígenas por posseiros e por grandes grupos chamados de 'agropecuários ou pecuários', sobre irregularidades praticadas pelas diferentes administrações da Funai e do extinto SPI, sobre a violação de terras indígenas pelo traçado de rodovias e a violenta transferência de grupos tribais para áreas diversas de seu 'habitat' com o visível intuito de permitir aos não índios o acesso às melhores terras", aponta o documento da comissão, da Câmara dos Deputados.
“Logicamente, para escrever o relatório final da Comissão da Verdade sobre todos esses episódios vou ter que checar todas as evidências”, concluiu Maria Rita, explicando que, além de se reunir com pessoas ou parentes de quem vivenciou os fatos denunciados, vai consultar documentos públicos, arquivos e se reunir com representantes de entidades que possam auxiliá-la.
Para especialistas como o vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, Marcelo Zelic, muitas dessas questões podem ter sido esclarecidas há 44 anos, quando o então Ministério do Interior criou uma comissão de inquérito administrativa para apurar denúncias contra o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão que antecedeu a Fundação Nacional do Índio (Funai), criada em 1967.
Desde 1963, quando foi alvo de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI), pairavam sobre o SPI suspeitas de que alguns funcionários teriam dilapidado o patrimônio indígena, escravizado índios, explorado sexualmente índias, repassado terras indígenas a empresas particulares e até mesmo participado de atos classificados como genocídio. As denúncias voltaram a ser discutidas anos depois, em duas novas CPIs, em 1968 e 1977.
Em 1968, a comissão de inquérito administrativa produziu um documento que ficou conhecido como Relatório Figueiredo, referência ao presidente da comissão, o ex-procurador Jader Figueiredo Correia. Convidado para a função pelo ex-ministro do Interior general Afonso Augusto Albuquerque Lima, Figueiredo esteve à frente do grupo que, por quase um ano, durante o regime militar, percorreu o país para apurar as denúncias de crimes cometidos contras a população indígena. O documento, no entanto, desapareceu. Segundo a versão oficial, as milhares de páginas do Relatório Figueiredo teriam sido consumidas por um incêndio no Ministério do Interior.
Por causa do relatório, o Ministério do Interior, em setembro de 1968, recomendou a demissão de 33 pessoas; a suspensão de 17; a cassação da aposentadoria de um agente de proteção aos índios e de dois inspetores. Além disso, apontou a atuação de outros envolvidos cuja punição não era de competência do Executivo.
Posteriormente, muitos funcionários punidos foram "inocentados" na Justiça e retornaram ao trabalho. O desgaste, no entanto, foi tão grande que, o próprio ex-ministro Albuquerque Lima admitiu, durante depoimento em 1977, que "por culpa de algumas dezenas de servidores menos responsáveis" não havia mais condições de manter o Serviço de Proteção aos Índios e por isso, em 1967, ele foi substituído pela Funai, que assumiu também as atribuições do Parque Nacional do Xingu e do Conselho Nacional de Proteção ao Índio.
“O Relatório Figueiredo é um documento importante, cuja única cópia desapareceu convenientemente durante o regime militar. Embora não respondesse a todas as perguntas que a Comissão da Verdade vai procurar saber, ajudaria a jogar luz sobre um período a respeito do qual há poucas informações, que antecede a substituição do SPI pela Funai, pouco antes da conclusão do relatório”, afirmou à Agência Brasil, em 26/09/2012, Zelic que coordena a pesquisa Povos Indígenas e Ditadura Militar a fim de oferecer subsídios à Comissão da Verdade.
A pesquisa conta com o apoio da Associação de Juízes pela Democracia e da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Para Zelic, além do Relatório Figueiredo, é importante resgatar a íntegra dos documentos produzidos pela CPI do SPI (1962-1963) e das CPIs do Índio, de 1968 e de 1977.
Com informações das agências de notíciasFonte: http://www.rededemocratica.org/index.php?option=com_k2&view=item&id=4306:um-documento-histórico-que-relata-a-violência-contra-os-índios
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